Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial

Chegada ao Supremo Tribunal de Justiça para a Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial.

Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial

Supremo Tribunal de Justiça

1 de Setembro de 2016

A abertura do ano judicial tem, por natureza, um duplo significado.

Celebra a Justiça, no encontro plural de alguns dos seus mais proeminentes protagonistas por força de carreira ou de função.

Convida a uma reflexão acerca da Justiça em Portugal.

Celebra a Justiça. Que não tem nacionalidade, nem género, nem cor, nem monopólio cultural, económico, social ou político.

A Justiça tem princípios universais, dos quais os mais significantes são, também, crescentemente admitidos como intemporais.

Daí o relevo do Direito Internacional e, nele, de núcleos essenciais considerados como devendo merecer primado e proteção reforçada. Como os direitos das pessoas e as garantias mínimas de que não regressamos à lei de talião, não aceitamos tudo só porque o mais forte assim o entende, não permitimos a arbitrariedade nas relações entre pessoas ou comunidades.

Daí, ainda, a noção de que é injusto resignarmo-nos a um mundo com fome, miséria, ausência de condições básicas de vida para números assustadores de pessoas, questionando a sua dignidade. Esta realidade conta para a Justiça, por muito que a queiramos reduzir aos direitos pessoais e políticos e àquilo que, deles, é aplicado por órgãos a que se chame tribunais.

Esta justiça global, comutativa, mas não menos redistributiva, apesar de conhecida como nunca, pela comunicação em tempo real, sofre a indiferença dos egoísmos próprios da luta pela sobrevivência, a banalização dos grandes números que tornam normal o patológico, o temor ou mesmo pavor perante a insegurança motivada pela violência incontida e imprevisível ou pelo terror sofisticado e que pretende criar o clima de estado de guerra de que fala o Papa Francisco.

Ora, o primeiro desafio e o mais difícil que temos diante de nós é o desafio cultural de querermos e sabermos continuar a lutar pela Justiça num tempo em que muito daquilo que nos rodeia convida a capitular ou a ceder, passo a passo, na ilusão bem-intencionada de que, um dia, o pêndulo da História permitirá recuperar aquilo que teve de se aceitar, a título, precário, a benefício da salvaguarda do essencial.

Queremos mesmo prosseguir esta luta? E sabemos fazê-lo, em contexto de aceleração dos acontecimentos e de globalização das suas causas e efeitos?

Como já não há fronteiras estanques, e tudo flui em cada minuto que passa, a resposta ganharia em ser o mais vasta e o mais culta possível.

Responsáveis ignorantes da História e das múltiplas dimensões do humano podem ser magníficos especialistas na gestão da moda – mais financista, mais economicista, mais politológica – mas apetrechados defensores da Justiça, muito provavelmente, não serão.

Comunidades sem memória, nem vitalidade cultural, facilmente serão presas do instinto populista do instante, da campanha poderosa do momento, dos fantasmas inexoráveis da hora.

É, pois, tempo de se deixar de olhar para a Justiça apenas na sua expressão, como veremos muito importante mas insuficiente, dos seus sinais visíveis, e de se pensar seriamente no combate cultural por ela, sem o qual tudo o mais se esboroa, como construção sem fundações. E de se perceber que essa luta não é somente dos apelidados operadores judiciários, denominação tecnocrática tão amada dos que gostam de reduzir o fundamental a visões mecanicistas e asséticas, convictos da sua mais simples descrição e mensurabilidade. É uma luta de todos, de toda a comunidade. Se ela não preza a Justiça como uma afirmação crucial para a sua existência e progresso, debalde serão as instituições ou os seus mais diretos servidores a darem relevo ao que o não merece, em termos coletivos.

Mas, manda a tradição que, nesta cerimónia, no final do desfiar do rosário de queixas dos legitimamente preocupados e das palavras de lenitivo dos que são supostos avançar com remendos para os males denunciados na Justiça portuguesa, o Presidente da República diga o que pensa acerca do que se ouviu ou, mais habitualmente, sobre o que considera serem os problemas essenciais da nossa Justiça, no dia-a-dia.

O que ouvimos ao cidadão comum, todos o sabemos e não difere muito do que enunciam os relatórios dos observatórios mais qualificados: Apesar de tudo o que tem sido feito, Justiça ainda lenta e cara, e, como consequência, classista, no sentido de diferente nos meios de defesa para quem pode e quem não pode; Justiça ainda penalizadora da mudança social, cultural e económica, porque a sua lentidão trava ou dificulta essa mudança; Justiça tantas vezes desprovida de meios ajustados para fazer vingar a qualidade daqueles que a servem com dedicação e competência; Justiça com cobrança de dívidas morosa, processos executivos sobrecarregantes, processos de insolvência, falências e recuperação de empresas prolongados; Justiça sequiosa de aposta acrescida na formação, na qualificação, na valorização do serviço público, na cooperação interprofissional, na disponibilidade e transparência de tecnologias de informação e comunicação.

Mas, se quisermos ir um pouco mais fundo, teremos uma Justiça fundada em legislação que, nuns casos, justifica revisão, noutros, maior contenção do legislador, noutros ainda, sensibilidade ao concreto que a mera transposição de teses académicas, soluções concebidas para um universo mais difuso e diferenciado ou conveniências de conjuntura podem, por si só, não garantir.

E temos, certamente, quer uma desigualdade de sensibilidade pública aos seus vários domínios, avultando sobretudo o penal, associado à ideia imediata de que aquilo que se considera tantas vezes eticamente reprovável é jurídica e judicialmente quase insusceptível de enquadramento legal e prova bastante, quer uma quase sistemática falta de consenso entre forças políticas e parceiros sociais, quer uma visível ausência de prioridade nacional.

Há uma parte desta realidade que tem uma explicação histórica.

Assoberbada com a longa travessia do período transitório, a Democracia portuguesa teve entre mãos questões de regime político entre 1976 e 1982. A que se seguiu o complexo debate acerca do regime económico até 1989. Entretanto, a adesão às Comunidades Europeias e os seus corolários jurídicos alteraram drasticamente áreas extensas do nosso Direito. Acrescendo ao alargamento do papel jurisdicional por força da própria conversão de ditadura em Democracia.

Em suma, apenas em meados dos anos 90, ou seja, vinte anos volvidos sobre o 25 de Abril, começa a surgir a atenção pública generalizada à Justiça, mais especificamente à Justiça penal, a mais mediática, e ligada a casos concretos e não a formulações abstratas.

É certo que o Código Civil, tal como a legislação comercial haviam merecido importantes reformas. E bem assim o processo civil e, mais comedidamente, os direitos penal e processual penal. E o laboral conhecera as naturais modificações de paradigma.

Só que uma coisa era o afã dos cientistas, dos governantes mais esclarecidos e dos magistrados cada vez mais operantes, outra a desejável exigência cidadã de maior importância dada a uma Justiça chamada a resolver mais litígios e a assumir mais decisivo papel comunitário. Essa exigência não se afirmara até então e pouco se afirmaria, mesmo depois da transição para o novo século, ao menos nos seus primeiros anos.

Temos, pois, que, nos debates políticos, pré e pós eleitorais, a Justiça nunca entrava nas prioridades cimeiras dos portugueses, como, de resto, nos inquéritos mais aprofundados acerca do seu sentir.

Como que começava a desenhar-se um paradoxo difícil de equacionar: os portugueses sentiam, no seu quotidiano, os efeitos das insuficiências de componentes do sistema de Justiça, mas recusavam-se a conferir à matéria prioridade política, devido a problemas mais graves, que as crises consecutivas a partir de 2001 viriam a acentuar.

Neste quadro, e evocado o bastante para sublinhar omissões ou adiamentos, o que, verdadeiramente, importa é saber se e como é possível converter a Justiça em prioridade política e se e como é possível ir formalizando, de modo mais sistemático e constante, um ainda que gradual ou faseado pacto de Justiça.

É possível conferir prioridade política nacional à Justiça? A resposta só pode ser positiva. Sem essa resposta nem sequer a Segurança – cada vez mais no topo das preocupações –, ou o crescimento, o emprego e o bem-estar social são viáveis. E muito menos, o que deve avultar num Estado Social de Direito Democrático, os direitos fundamentais tem condigno acolhimento.

Pensar que qualquer modelo económico, social, cultural ou político pode ambicionar a ter sucesso sem olhar à Justiça é ignorar que nada pode ser efetivado sem princípios e regras e à margem da sua adequada aplicação.

Mas como conferir prioridade à Justiça?

Em rigor, somente através de um Pacto de Justiça, realidade apenas encarada pontualmente em 2006 para o processo penal, entre o partido liderante do Governo e o liderante da oposição. Pacto de Justiça que comece numa mudança cultural na sociedade, que supõe desde logo um denominador mínimo nos parceiros sociais, antes de chegar aos partidos políticos.

Ou são aqueles que, diariamente, contribuem para que a Justiça não seja uma ideia vã a encontrarem-se e a entenderem-se, mesmo se por parcelas, assinando contributo crucial para a consciencialização social ou então é mais difícil esperar que sejam os partidos políticos a encetarem esse caminho.

Podem esses partidos ter o bom senso de, à chegada ao Governo, não questionarem tudo o que herdaram, de procurarem acomodações ou vias pacificadoras. Mas, revelarão sempre clivagens vindas de projetos e promessas anteriores a tolherem os passos iniciais ou então, temores recorrentes de que cada iniciativa que tenham seja vista como conveniência politica relacionada com áreas ou casos mais mediáticos na arena partidária. De um lado ou de outro. Com quase inevitáveis leituras conjunturais.

E, depois, se, ultrapassados os escolhos interpartidários, não houverem recolhido aceitação nos principais protagonistas do sistema, o que decidirem poderá, com forte probabilidade, não passar de letra morta.

Mas não haverá o perigo de deixar nas mãos de corporações poderosas e, para alguns, por natureza, insaciáveis, o que um Governo ou um Ministro ou uma maioria determinados mais depressa e bem poderiam resolver?

Olhando a décadas de Democracia, parece sensato optar pela máxima transparência e preferir a clareza da afirmação prévia das posições de juízes, magistrados do Ministério Público, advogados, solicitadores, oficiais de justiça e outros construtores do caminho para a Justiça, além de académicos, à dúvida sobre se essas posições não acabam por influenciar decisões políticas sem que nem decisores disso tenham devida noção, nem seja possível o indispensável escrutínio público.

Não se trata de substituir o papel constitucional próprio e inalienável dos órgãos de soberania e dos partidos políticos. Mas de garantir, com clareza, que os parceiros sociais da justiça, na diversidade dos respectivos estatutos, contribuam, decisiva e conjugadamente, para a percepção social da prioridade da justiça e, do mesmo modo, para que o labor dos órgãos de soberania e dos partidos seja depois mais célere, mais transparente e mais eficaz. E, ao fazê-lo, revelarem o seu efetivo espírito reformista.

Em suma, importa assegurar à Justiça a prioridade política duradoura que lhe tem faltado. Para o que urge uma mudança cultural, uma mudança alargada de mentalidade na sociedade portuguesa.

Importa, por isso, também, que os parceiros não partidários no mundo da Justiça vão muito mais longe do que já foram e criem plataformas de entendimento que possam fazer pedagogia cívica e servir de base ou, pelo menos, abrir caminho aos partidos políticos. Criando condições reforçadas para assim se associarem à premência de um Pacto de Justiça. Mesmo se delineado por fases ou áreas.

Portugal espera de todos os que, hoje, aqui falaram, e de muitos mais, que têm uma palavra a dizer sobre a sua vida na Justiça e pela Justiça, que sejam um núcleo fundamental para a prioridade adiada e os acordos imprescindíveis.

Contam, para tanto, com o apoio inequívoco do Presidente da República, em nome de Portugal.

01
Set
2016